quinta-feira, 7 de maio de 2009

Western Union: Small Boats de Isaac Julien



Museu do Chiado, no âmbito do Festival Temps d’images

Western Union encerra a trilogia de instalações audiovisuais da autoria de Isaac Julien que teve início com True North (2004) e prosseguiu com Fantôme d’Afrique (2005). Estas obras lidam com a condição pós-colonial, com o estabelecimento de novas relações globais e com as suas consequências, levantando questões filosóficas e explorando o tema da raça e do género, sendo ainda enriquecidas por uma frenética dança contemporânea.
As obras partem de uma intensa pesquisa na área do cinema e do suspense, fundindo o género ficcional com o género documental, compondo uma entidade densa que se recusa a contar uma história de forma linear, como habitualmente sucede na produção cinematografíca, dando lugar a uma narração fragmentada, paralela, polifónica e não-linear.
As projecções simultâneas em diversas telas tornam impossível captar tudo ao mesmo tempo. Não é possível encontrar aqui um ponto de vista único e panóptico, no sentido foucaultiano. Não estamos aqui perante uma composição totalizante, mas sim diante de várias peças relativas a uma história (feita de diversas histórias entretecidas) que é diferente de cada vez que é vista. Deste modo, o visitante não constitui um mero receptor passivo, mas sim um editor activo do material fornecido pelo artista.
Os vídeos de Isaac Julien não obedecem a uma lógica temporal, o que também se verifica no trabalho de outros artistas contemporâneos, embora possuam um referente espacial específico (neste caso, o mar Mediterrâneo), contrariamente à tendência das últimas décadas para apresentar trabalhos de vídeo “neutrais”. O espaço re-emerge assim como um paradigma nestas obras cujo objectivo e desenvolvimento é deliberadamente situado.
O título da obra remete para a instituição financeira com o mesmo nome, a Western Union, que organiza transferências de dinheiro entre a Europa Ocidental e o resto do mundo, as quais são constantemente efectuadas por imigrantes provenientes de África, do Brasil ou da Europa de Leste que assim enviam dinheiro às suas famílias, pagando por este serviço um preço maior ou menor, consoante a quantia e o país. Esta obra, contudo, debruça-se sobre a viagem que é efectuada em sentido contrário, para a qual o preço a pagar é bem mais elevado.
Assim, conta-se nesta obra a história dos trabalhadores oriundos da África subsaariana que atravessam o Mediterrâneo em pequenos barcos de pesca, em direcção à Sicília, procurando fugir à fome e à guerra, em busca de uma vida melhor. Alguns destes migrantes económicos, se não a maioria, ou não atingem sequer o seu objectivo ou então nunca regressam.
Esta obra foi concebida em parceria com o coreógrafo de dança contemporânea Russel Malliphant e conta com a participação de uma mulher enigmática que assombra toda a trilogia como um fantasma. Essa mulher parece ser invisível para todos, menos para o visitante. Como um espectro.
Assinalem-se ainda algumas sequências notáveis como aquela em que se vêem alguns homens a nadar debaixo de água, que é acompanhada por uma poderosa banda sonora, constituída por batidas electrónicas em crescendo, impossíveis de distinguir, que remetem para o afogamento daqueles homens e para a sua desesperada tentativa de sobreviver.
Esta cena é subitamente cortada, dando lugar a outra na qual o ritmo abranda e se assiste a um fio de água a pingar e ao surgimento de um intruso, uma mulher que se torna numa testemunha.
À visão da devastação é agora confrontada a grandeza do Palazzo Gangi (célebre cenário da obra prima de Visconti, O Leopardo), povoado por sussurros, onde se encontra a 'black magic woman', desfocada e invisível, diante de um monstro confiante e ávido, uma mulher loura, remetendo este ambiente para a suposta superioridade europeia dos últimos séculos. A mulher caminha por um ambiente luxuoso que evoca os tempos coloniais e uma atitude religiosa; os candelabros, os relógios nos quais o tempo parou e quantidades absurdas de ouro. Por outro lado, os homens (de algum modo deslocados neste cenário) descem pela escadaria ou debatem-se em cerâmicas que patenteiam um testemunho visual da história europeia, uma história de violência; uma história colonial, feita de representações do Outro, figurando-o como meio-humano, ou meio-animal.
Os barcos de pesca apodrecem em depósitos de sucata na cidade siciliana de Agrigento. Durante bastante tempo somos levados a observar um pano vermelho-rubi que flutua na água, simultaneamente belo e assustador, que se descobre ser a camisola do imigrante. A alguns metros de distância das praias de areia branca onde habitantes locais e turistas repousam calmamente, encontram-se os cadáveres daqueles homens, cobertos por folhas de alumínio, brilhantes como prata.Existiremos apenas como miragens de nós próprios, como numa outra sequência se sugere?Será que constantemente vemos e projectamos aquilo que não existe?
Estes momentos perturbadores prosseguem ao longo de toda a peça, entregando o visitante a um sentimento ambíguo, apesar da beleza das imagens, até então nunca vista.

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